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10 de maio de 2014

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Eu vi em um programa de tv que uma quadrilha está roubando prédios aqui na área. E você sabe que vigias noturnos sempre dormem quando o interfone fica muito tempo sem tocar. Lembra quando a gente pegou o vigia sem dentaduras? Devia ser umas três da manhã. Lembra! Você abriu a porta do elevador pra mim e apertou o botão do andar, quando a porta se fechou rimos juntos da boca banguela dele. Eu não quis te falar sobre a quadrilha que roubava prédios. Achei melhor ficar rindo com você até chegarmos no nosso andar. Já reparou que a gente não conversa mais no corredor? Eu acho ele cada vez mais comprido. E as luzes demoram pra acender. Eu sempre fico imaginando o que está acontecendo atrás daquelas portas. Nunca escutei nada além de tvs com volumes baixos e latidos de cachorros. Não temos cachorros. Tudo bem, eu prefiro gatos. O que acha de adotarmos um? Ele vai me acordar quando eu dormir no sofá. Você sempre briga comigo quando eu durmo no sofá com a tv ligada. Não consigo evitar, os assuntos da tv sempre me dão sono. Ás vezes acho que todos os nossos vizinhos também dormem no sofá. Mesmo aqueles que assinam sky. O vigia do prédio tem um radinho de pilha, você já viu? Ele escuta moda de viola ás vezes. Eu já te falei que moda de viola me faz lembrar do meu pai? Estou com saudades dele. Uma vez ele estava dançando no meio da sala, e rodava, e mexia os braços no ritmo da música, de repente ele tropeçou no tapete e enfiou o cotovelo em um aquário que ficava no canto da sala. Ele sapateava tentando desviar os pés dos peixinhos e tentava pegá-los com as mãos. Os peixinhos escorregavam das mãos dele e ele tentava salvá-los a todo custo. Depois ele correu até a cozinha, encheu uma bacia com água e colocou todos os peixinhos lá dentro. A maioria deles ficaram boiando na superfície. Ele salvou uns dois ou três depois que ligou a mangueirinha de oxigênio. Aquele aquário ficou quebrado um tempão. Os peixinhos ficaram bem. Acho que as coisas sempre ficam bem. Mesmo quando improvisamos. Talvez eu devesse tocar o interfone da portaria algumas vezes durante a noite pra acordar o vigia. Não custa nada, a gente sempre dorme só quando o dia amanhece mesmo. Quem sabe pedir uma pizza, o entregador vai despertar o sono dele. Tá bom, vai. Eu tenho que parar de assistir esses noticiários sensacionalistas. Eles emburrecem e nos deixam neuróticos. Sei que as coisas acontecem. E quem sou eu pra evitar que as coisas aconteçam. Céus. Eu quero mais é que as coisas aconteçam. Não vou te preocupar com vigias que dormem e ladrões de prédios. Eu tenho coisas mais importantes pra te dizer. tipo: que eu adoro te ver andando pelo corredor com as chaves nas mãos. Isso me lembra quando a gente começou a namorar. Me dava tesão ver você andar pelo corredor comprido do motel com aquela chave na mão. Eu adorava a cara que você fazia pra mim quando abria a porta do quarto. Aquele tempo a gente conversava mais nos corredores. E o som que saía das portas eram de gemidos, não de tvs com volumes baixos. E o vigia, nunca estava dormindo quando a gente chegava. Que bom que as coisas mudam. Hoje, quando te vejo andando com a chave nas mãos não sinto mais tesão. Sinto outra coisa. O tesão é muito raso perto do que sinto agora. Que bom que as coisas mudaram iguais pra nós dois. É bom saber que você está abrindo a porta de casa agora.