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12 de janeiro de 2013

Gritos mudos


Ela tinha perdido a mãe, o pai, os amigos
tinha perdido tudo o que conhecia
só restava Deus
Ela aprendeu que ele sempre a amaria
que ele sempre a ouviria em qualquer hora e em qualquer lugar
todas as noites ela pedia pra Deus não deixar ninguém fazer nada de mal pra ela

ela pedia pra Deus fazer aquele sofrimento parar de doer
ela pedia pra Deus trazer sua mãe de volta
seu pai de volta
ela pedia pra Deus trazer pra perto dela qualquer um que a amasse
qualquer um que a fizesse feliz nem que por alguns segundos
qualquer um que a fizesse sentir algo que não fosse dor

Ela tinha apenas 13 anos quando seu quarto começou ser frequentado durante as madrugadas
sem seu pai
sem sua mãe
sem ninguém que a ouvisse gritar

Ela apenas caía de joelhos no chão e pedia pra Deus que a livrasse do mal
e que afastasse qualquer um daquela maldita porta
Ela gritava baixinho enquanto mordia seu travesseiro
ela chamava por Deus
ela chamava seu pai
sua mãe
qualquer um
qualquer um que pudesse ouvir aquele grito baixinho que quase ninguém era capaz de ouvir

ela gritou
gritou
gritou
até ficar muda
ela tinha apenas 13 anos quando ficou muda
fria
e oca

Maldita porta sem trancas
maldita solidão
maldita dor que a gente sente quando ficamos mudos
malditas todas as náuseas doloridas
malditos surdos que nunca ouvem um grito de dor

Não demorou muito para os joelhos cicatrizarem
só restaram as marcas
o tempo não pode apagar marcas
com o tempo a dor ficou suportável
com o tempo a dor se encaixou nos buracos que ficaram no peito
com o tempo a dor foi a única coisa que restou

Nunca mais falei com Deus.

Não sei o que eu quero. Só não quero ser igual a você


Quando eu tinha uns seis ou sete anos minha professora me pediu pra fazer um desenho. Eu desenhei uma árvore com frutas de todas as cores entre um céu com um sol bem amarelo e nuvens brancas espalhadas por todos os lugares. Levei o desenho pra minha professora como se fosse uma tela de Picasso, achei que eu era uma artista precoce, uma revelação, ou coisa do tipo. Mais não. Ela disse que uma árvore não podia voar entre as nuvens, e que meu desenho precisava de um chão. Eu voltei pra minha carteira e desenhei duas asas na árvore.
Aquele dia eu descobri o quanto as pessoas são iguais, e aprendi o quanto é triste olhar sempre do mesmo jeito pra tudo. Esperar como a figurinista da novela das oito vai vestir a protagonista pra saber qual vai ser a moda da estação, assistir a tv aberta aos domingos pra decorar a letra daquela musica que todo mundo ouve no carro do muleque piranha, e no buteco da esquina, e no carro da pamonha, e nos mp3 sem phones da "galera" nas ruas, metrôs, ônibus... Que inferno! Por que todos eles gostam das mesmas coisas?
Pessoas como a minha professora dizem palavras decoradas mesmo quando elas já não tem mais sentido. Compram livro com cinquenta tons de cinza sem saber do que se trata só porque é cool, comem peixe cru disfarçando a náusea socialmente, se casam e fingem felicidade nas redes sociais,  dizem bom dia aos inimigos, fodem com os amigos, esquecem da família o ano inteiro só pra ter assunto na ceia de natal, tomam porre pra deixar a vida menos desgraçada, viajam fim de ano pra ter do que reclamar, estudam para o vestibular sonhando com um canudo vazio... tudo igual, gerações e gerações de pessoas iguais.
Até hoje não descobri o que quero, já mudei de ideia muitas vezes. Tomei porrada, senti dores esquisitas que a medicina não explica, chorei sem saber o por que, fui embora, voltei, me arrependi, subi, desci, fui filha da puta, apanhei na cara, chorei, caí no chão, levantei, chorei de novo, quase pulei, e estou aqui, ainda sem saber o que quero.
Dizem por aí que eu não sei amar, dizem também que meu peito é oco. Eu discordo. Só eu sei o que tem aqui. Ninguém mais. Aqui dentro. Aqui ó, dentro do meu peito. Ninguém tem acesso, só eu.
Só eu sei o que eu sinto. Não preciso provar nada. Não quero ser uma pessoa boa. Não acredito em pessoas boas. Pessoas boas me assustam. Soam falsas, sei lá, dentro de todo mundo mora o mal. Não quero ser boazinha, não levo jeito pra madre e nunca gostei de escoteiros, só quero ser eu mesma, com as minhas árvores voando entre as nuvens, minhas dúvidas, medos, dores, gozos e tudo isso que chega dentro de uma bandeja pra escolhermos o que pegar.
Eu não sei onde vou chegar andando nessa estrada sinuosa e cheia de estilhaços de guerras sem fundamento. Eu só sei que não quero terminar como a minha professora.

Eu menti

Eu menti
ainda escuto aquele disco riscado
e quando a agulha fica esbarrando no trecho daquela musica
eu penso em você

eu menti
ainda ligo na sua casa e fico quieta só pra ouvir sua voz
fico olhando pra sua janela escondida no escuro da calçada
e fico lá

até que você acenda a maldita luz
só pra eu ter certeza que você está lá

e cerro os dentes pra impedir o choro
é
eu ainda tenho o péssimo hábito de prender o choro e fingir sorrisos bestas


eu menti
quase morri quando a porta bateu aquela noite
amarrei minhas mãos junto aos pés pra não atender você
mais ouvi seus recados
todos eles
e falei bem baixinho que ainda te amava
 

eu enchi a casa de velas perfumadas e dezenas de incensos  pra tentar acabar com seu cheiro que ficou
maldito cheiro
você deixou ele espalhado em todos os lugares
nos cantos
vãos
frestas
em tudo
tentei me esconder de você
do seu gosto

mais ele está em mim
na pele
na carne
na língua

nos meus olhos fechados
dentro de mim
fora de mim
você está em tudo

vai embora
sai daqui
sai da minha cabeça
sai de dentro de mim
me deixa respirar como eu costumava fazer antes
eu quero levantar desse chão
e puxar essa maldita flecha que está atravessada em mim

eu menti
ainda sou louca por você
e sentir a sua falta é o que venho fazendo desde que você se foi
agora você já pode sair daqui
você conseguiu
eu já te falei toda a verdade.




Sem sentido

- O que as pessoas fazem? Perguntei para o meu terapeuta depois de quase uma hora de silêncio em seu consultório.
- Vivem, Xandrina. É só dar um sentido. Ficamos em silêncio até o final da consulta, peguei minha receita azul e fui pra casa.

No caminho vi um homem fuçando um saco de lixo. Uma criança com os joelhos no chão procurando restos de crack pra preencher seu cachimbo. Uma discussão de casal com ofensas imperdoáveis. Pessoas pedindo dinheiro, cigarro, comida, um gole de água ou qualquer coisa. Trânsito, filas, sujeira, mal cheiro, discussões sem fundamentos, um mar de pessoas procurando um lugar pra por os pés, jornais escritos com sangue, igrejas cheias de infiéis, desempregados, casas e prédios abandonados, cartilhas usadas pra crianças pobres, pouca informação, muita bunda, furtos, pedintes, pedintes e mais pedintes, calçadas tomadas por drogados, acampamentos de desabrigados... 

No caminho pra casa eu vi muita coisa. Só não consegui ver sentido pra nada.

As pessoas vivem. Só isso.

Eu te amo. Só não me peça pra me acostumar com isso.

Fico olhando meu corpo estirado na calçada
em meio ao lixo
sendo vasculhado por catadores em busca de algo vendável
é assim que me sinto quando amo
eu nunca soube lidar com o amor

Foi assim com você
me rendi ao seu amor
e a tudo que você tem
gosta
e quer
retribuímos sorrisos
beijos
toques
suor
gemidos
sussurros
segredos 
e eu te amo tanto

Eu me dei a você inteira
pulei da janela e matei tudo meu pra ficar com você
esqueci como eu era
e de quem eu gostava
e o que eu comia
e ouvia
e conhecia
esqueci que sabor tem as uvas
e o som do silêncio que fica quando estou sozinha

Só que meus contos de fadas não duram
o era uma vez não me excita
e eu não gosto do clichê felizes para sempre
sempre preferi coisas perecíveis
o charme das lágrimas e aquela dorzinha no peito é o melhor combustível pra que eu não perca o tato da vida
e o amor pra sempre
me faz perder tudo isso

Sinto muito
mais o fantasma da moça voltou
ela me chama
ela me pede a vida de volta
ela não está morta na calçada
eu é que estou morta na janela
ela me chama
e eu...

Eu te amo
só não me peça pra me acostumar com isso
não quero que você seja só mais um cigarro apertado no cinzeiro
ou um copo vazio
uma ressaca moral
sei lá
eu quero você sem costume
com saudade
tesão
admiração
eu sempre vou querer te amar
só não me peça pra me acostumar com isso

Desculpa eu ter riscado o lado b do seu disco
eu não quero que você o escute com ninguém
o travesseiro está com o cheiro do meu shampoo
e aquele vídeo de sacanagem foi apagado 
acabaram as laranjas
(você sabe que eu sempre prefiri uvas)
e a lavanderia entregará as roupas as seis
desculpe não dizer adeus
estou levando sua coleção de selos comigo
prometo devolver todos nas cartas que te enviarei

Vou continuar te amando 
só quero ter a chance de sentir saudades suas
e isso
não da pra ser feito ao seu lado.

Por que não?

Ele tinha uma cueca beje que eu odiava
tinha também um gosto musical que me envergonhava
usava chapéu pra esconder a falta de cabelos
passava perfume na gola da camisa
e citava frases boas como se fossem dele

Por que não?

Uma nuca descoberta
uma língua molhada
beijo quente
mão na cintura
eu não precisava nem ver o rosto dele
foda-se o fundo musical
a cor da cueca
a falta de cabelos
as notas amadeiradas do perfume dele foi fácil de ignorar

Da musica que ele me ofereceu eu só aproveitei o ritmo
joguei a cueca beje e a camisa perfumada pela janela
e a noite só terminou quando eu quis

Ele acordou sozinho
comido
chupado
sem cuecas
e sem camisa

No espelho escrito a batom meu telefone
e na cama o dinheiro do táxi

Quando cheguei em casa
abri uma cerveja
acendi um cigarro
e fiquei esperando meu telefone tocar

Nunca um homem me ligou tão rápido
parecia uma mulherzinha usada
inconformada
e arrependida

Homens

Sempre acham que todas as mulheres são personagens de poemas cheios de rimas incoerentes 
sempre procuram apenas doçuras no meio de um par de coxas
não sou mulherzinha
eu sei suportar bem minhas dores
separar orgasmos de amores
e também sei o que quero de alguns homens

Por que não?